sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O heroísmo solitário

Alguém que dá a sua vida por algo maior ou diferente dele mesmo é considerado um herói.

Na infância, quando precisamos abandonar a condição de ser criança, para nos tornarmos adultos, é como se deixasse morrer essa personalidade infantil e criar uma abertura para que um adulto responsável viva em seu lugar. A maioria de nós passa por esse ato de heroísmo, quando nos livramos de uma dependencia psicologica e assumimos a nossa própria autonomia.

Isso requer uma morte e uma ressurreição. 

E esse é o tema básico da jornada do héroi: abandonar uma condição, encontrar a fonte da vida e chegar a uma condição diferente, mais rica, mais madura.

Então mesmo não sendo hérois no sentido grandioso de redimir a sociedade, empreendemos essa jornada espiritual, psicologica dentro de nós mesmos.

Todos nós somos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés. Esta é uma enorme transformação, e certamente, um ato heróico, caso fosse praticado conscientemente. 
Superpoder é um termo para indicar habilidade sobre-humana. Na cultura popular, pode ser usado para descrever as características de um herói.
Pode incluir capacidades de projeção de vôo, visões de raio-x, campos de força, invulnerabilidade, telepatia, telecinese, teletransporte, super-velocidade ou controle do tempo.

O verdadeiro herói é aquele que possui a capacidade de ficar a sós, de apagar a luz, de calar a voz.

O verdadeiro guerreiro, pra encontrar a paz, precisa folgar os nós dos sapatos, da gravata dos desejos, dos receios.

E os super-poderes que precisamos usar todos os dias são os de esquecer a data, perder a conta, ter as mãos vazias e ao invés de capas e escudos, ter a alma e o corpo nus.(*)

                                                                                                                        * Gilberto Gil


Bastante Sentido


Fugimos dela. Da emoção. Como quem foge de uma praga, peste, epidemia.
A emoção é torcida e distorcida a todo momento para não sabermos direito se ela está lá.


É muito imediato a gente se dar conta que perdeu o olfato, visão, paladar, visão, tato e nos preocupamos em recuperar esses sentidos, na pior das hipóteses, nos adaptamos.  
Ao contrário, não percebemos quando perdemos por exemplo a razão. Demora para cair a ficha.
Os sentimentos são mais sutis que os sentidos e nem por isso agem separados.
Quantas vezes já ficou surdo de raiva, ou mudo de medo. Ou ainda cego de amor?


As epidemias acontecem no âmbito emocional também e não percebemos:
Os modelos de relacionamento que contaminam uma, duas, sei lá quantas gerações.
As técnicas de assepsia que procuramos ter quando as novidades chegam até nós.
Quando a ausência do outro é um alívio, e portanto nossos bunkers protetores cheios de comida, bebida, livros, roupas, carros, tecnologia e o resto das coisas que ficam congestionando a passagem daquele que realmente pode chegar até você.



Seria interessante se quem assistisse um filme do tipo Perfect Sense pudesse mudar (a tempo) o jeito de viver e se boicotar menos, dando chance pra usufruir mais dos sentidos e dos sentimentos que estão por aí todos os dias nos rondando e talvez por isso nem percebemos direito a vida que vai passando enquanto estamos preocupados demais com todo o resto.



Amor, Ódio, Reparação e Lisbeth Salander.

Lisbeth Salander é andrógina, miúda e parece anoréxica – “é metabólico, não engordo”, diz no filme americano. Come junk food, fuma um cigarro atrás do outro, circula pela noite underground. Parece frágil, mas é forte. E se vinga. É marcada – e faz marcas. Sem confiar na lei e no Estado, faz justiça na ilegalidade e nas margens. Para ela, esses limites não existem, o mundo não se coloca mais nesses termos. Todas essas convenções, no olhar e na experiência de Lisbeth, já apodreceram. Em sua moto pelas estradas – ou escondida sob o seu capuz – ela talvez seja a nova mulher, aquela que se recusa a ser vítima, mas que jamais queimará sutiãs em praça pública. Salander é a nova mulher na medida em que também é o novo homem.

“ser e não ser”, ao mesmo tempo, é o único modo possível de existir.

Para Lisbeth, a única saída possível é individual. Ela é um rato resistente, sobrevivendo nos porões e roendo os alicerces da cidade, na mais absoluta solidão existencial. Ela é uma hacker – e o único movimento coletivo possível é aquele onde os indivíduos não sentem o cheiro da pele um do outro, cada um seguro na sua toca.


A outra face essencial de Lisbeth é o não pertencimento. Estrangeira em um mundo sem fronteiras, o conceito de nação não faz parte do planeta dela. Lisbeth é mais familiarizada – e a escolha do termo é proposital – com o hacker sem nome de lugar nenhum do que com o vizinho de porta. Lisbeth não tem chaves – tem senhas. Estar em Estocolmo ou em Pequim, para ela tanto faz. Ela não é estrangeira por pertencer a um outro país, ela é estrangeira como um ser em si. Ela é estrangeira diante do outro – ou de quase todos os outros – porque o olhar do outro para ela não faz a menor diferença. Ela não reconhece esse olhar, estrangeira que é frente à sua própria espécie. Ser estrangeira, para Lisbeth, é parte da nova condição humana.




Com uma profunda e justificada desconfiança dos homens – a começar pelo próprio pai – e com uma profunda pena das mulheres – a começar pela própria mãe –, Lisbeth Salander cria um homem e uma mulher, um nem homem nem mulher para si. Radical em sua androginia, Lisbeth poderia ser definida como uma bissexual, não fosse esta uma definição superada e que já não dá mais conta da complexidade da sexualidade humana.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Precisamos falar.








We Need to Talk About Kevin, no original em inglês é um romance de ficção publicado em 2003, escrito por Lionel Shriver, adaptado para o cinema pela realizadora escocesa Lynne Ramsay. 

Shriver avisa: a maternidade pode destruir sua vida.


A personagem Eva Khatchadourian (Tilda Swinton) era uma viajante, uma mulher livre, e sua vida parecia plena mesmo sem sentir o chamado do instinto materno. Mas por amor ao marido, que desejava ser pai, e iludida com a idéia de que estaria embarcando em mais uma aventura, resolveu engravidar.

Ganhar um filho é perder-se do mundo conhecido.

Logo de cara, na primeira cena (mais uterina, impossível), vemos Eva-Tilda feliz da vida, sendo carregada em plena La Tomatina, uma das festas mais conhecidas internacionalmente, realizada na Espanha, totalmente entregue à experiência, de braços abertos a la Jesus Cristo.
Ela tinha razão, a maternidade pode ser uma viagem fantástica, mas só descobrimos o quanto de neuroses que carregamos na mala quando já tivermos chegado ao destino. 

Uma vez nascido, o bebê Kevin foi visto pela mãe como possuindo uma personalidade própria, pré-existente, e destinada a se desencontrar com a dela. Desde o começo estabeleceu-se um duelo de subjetividades, uma tensão entre diferentes. Ele rejeitava seu leite, cujo sabor não suportava, sequer na mamadeira que tomava exclusivamente no colo do pai, chorava de forma incessante, alheio ao conforto de seus braços. As intermináveis gritarias de cólica pareciam ser exclusivamente para sua mãe, pois cessavam no instante em que o pai entrava em casa, e Eva via nisso uma intencionalidade maligna contra si.



Eva e Kevin terminam vivendo um para o outro, continuando sua simbiose às avessas, dedicando-se e odiando-se mútua e intensamente.

No livro, cada fiapo do tecido da ambivalência do amor materno é rastreado, assim como as contradições entre a maternidade e a liberdade das mulheres.

No filme não fica claro quanto à profissão de Eva, que também é metáfora de seu modo de vincular-se: para escrever seus guias de viagem, ela investiga formas, lugares e dicas para que as pessoas possam circular pelo mundo gastando pouco e incomodando-se o menos possível. 
Viajando, andamos por lugares em que ninguém nos conhece, onde nada se espera de nós e procuramos extrair o máximo de prazer da forma menos dispendiosa possível. Eva conseguia viver assim, mas não havia jeito de ser mãe com esses critérios.

Na visão do pai, Kevin cumpria o papel social do filho, era um cenário, independente de quem ele fosse, enquanto Eva faria o da mãe, apesar de quem ela havia sido. 

Também não é mostrado no filme: Em negociação com o marido, Eva decide se o filho fosse menino, ele teria o pré-nome escolhido pelo pai e carregaria o sobrenome materno, Katchadourian, que é de origem armênio. Ela argumentou que seu povo foi cruelmente massacrado e por isso mereceria ser homenageado com a nomeação de seu filho.

A característica da negociação entre os pais de Kevin a respeito de seu nome determinou que ele tivesse que apegar-se a algum traço, de preferência materno, para fazer-se elo, conexão, entre uma origem, uma família, o passado de um povo, e um projeto de futuro, o seu futuro. Kevin é filho de um pai-cenário e uma mãe-viajante, entre eles não há síntese.

Para delinear um papel na vida, para fazer seus planos, um filho inspira-se em suas origens. Ele pode fazer isso a partir daquilo que orgulha ou mesmo do que envergonha a seus pais e antepassados, pode tomar essa base para continuá-la ou para romper com ela, mas sua família sempre cumpre algum papel. Será melhor se isso lhe for transmitido de alguma forma explícita, senão tentará fazer sua versão, fazer-se elo de uma linhagem de algum jeito, não necessariamente de forma patética como Kevin.

A recusa de uma mulher à maternidade parece ser a ameaça visível à continuidade das famílias e o livro de Shriver é um exemplo das fantasias geradas por esse medo, do quanto isso soa ameaçador e teme-se que custe caro para a mulher e para a sociedade. 


O drama de uma vida pode sempre ser explicado pela metáfora do peso.


Thereza e Thomas 
Thomás e Sabina

“Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.” – Milan Kundera


Carregamos esse fardo, que suportamos ou não. Do peso. E da leveza. 

Gosto do Kundera pela sua inteligência. Porque fala dos temas que me interessam de uma forma que me agrada: através da ilustração, a literatura ensina. 

Aquilo que dá sentido à nossa conduta sempre nos é totalmente desconhecido. 
Sabina - a insustentável leveza do ser.






quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Cozinha: ali se aprende a vida.



É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando. 

Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. 
Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. 
Coisas mágicas acontecem. 
E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... 
Terminado o banquete, percebem, de repente, que o céu não se encontra depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças de novo. 

Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim "affetare", quer dizer "ir atrás". É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.




Os movimentos param as coisas.

Pina 3D - do  cineasta alemão Wim Wenders.









Pleasure





"Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas.(...) Seu êxito jamais é certo, pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer."
(Freud, 1930, p.103)