segunda-feira, 11 de maio de 2020

excêntrico: adjetivo. que (se) desvia ou afasta do centro.



Buscando um filme no festival Varilux (gratuitamente, nesta quarentena do Corona Virus), me deparei com o título (em português) que me chamou à atenção, A Excêntrica família de Gaspar






Imediatamente me lembrou um filme holandês que assisti na década de 90, ainda em VHS, que se chamava A Excêntrica família de Antônia. 


VHS
Sempre gostei de filmes onde a personagem principal é a família. Os dramas, as bizarrices, os risos e as lágrimas. Esse universo que aglutina pai, mãe, irmãos em uma infinidade de sentimentos. 

Nesse filme antigo, tinha uma mesa do lado de fora da casa,  onde as pessoas faziam as refeições. Cada vez mais a mesa ia crescendo. Chegavam pessoas novas, diferentes, que vinham de lugares sofridos, doloridos e encontravam ali conforto e amor. Essa mistura de tipos de gente e  gerações me encantava. 

Pude entender naquela época, no início da minha faculdade de psicologia,  um possível significado de familia: O lugar onde as pessoas ficam alimentadas, abastecidas de amor. Aquela mesa representava a continência que cada um não possuia antes de se vincularem.


A mesa que me encantou



O título original que não tinha nada de excêntrico 

Voltando para a família do festival de cine francês, com o título original: Gaspard va au marriage,  um filme de 2017 de um diretor que entrou pra minha lista de nomes onde fico atenta e procuro acompanhar: Antony Cordier.


Gaspar e seus irmãos no filme de Antony Cordier  

A mostra de delicadezas é grande, e a riqueza de temas que o filme desenvolve também é digno de um debate regado à vinhos. 

O início do filme é peculiar, começa com um contrato. 
Me lembrei de Bion e seus textos sobre a turbulência emocional que está embutida nos encontros. Gaspar ali, talvez já buscava transformações, mas não se dava conta. 




Somos convidados a participar como observadores privilegiados. Somo visitantes de um zoo-lógico de animais/ humanos e as ligações que vão se estabelecendo ao longo do filme, nos levam a pensar nas nossas relações sejam elas fraternais, sexuais ou banais. 



O viés ironico do cineasta, nos protege de percorrer o caminho fácil dos clichês dos instintos e primitividade. Com uma filmagem estética e bom gosto musical, nos leva para outro caminho.



patriarca da família Max (Johan Heldenbergh)
 


Cada filho tinha sua peculiaridade:  as genialidades, senso de responsabilidade, carencias e fragillidades.

Não estamos diante da típica familia francesa, ou de qualquer outro lugar da europa, ocidental. 





Vemos que no final das contas, o quanto é árduo nosso caminhar para nos libertarmos das amarras, dos laços familiares, que sempre nos confundem e nos impedem de ver claramente quem estamos nos tornando.


Je ne t'aime plus

Aquela famosa frase de Freud em Inibição, sintoma e angústia – “existe muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento poderia nos fazer acreditar” (FREUD, 1926)

Em uma cena o irmão mais velho diz por uma série de razões e motivos por que não ama seu irmão mais novo (que mora longe e vive sua vida separada do clã). E é compreensivel num primeiro momento, mas no fundo acredito que existe tanto amor (camuflado de ódio e inveja) que no final temos o resultado bonito de uma carta explicando: 




que só é possível construir uma nova família e amarmos novas pessoas, para enfim re-nascer como pessoa,  indivíduo,
se obtivermos sucesso nas cesuras

**A cesura marca a própria constituição do aparelho psíquico: interno/externo, inconsciente/consciente, vigília/sonho etc. Mas, para Bion, é uma constituição que se dá a todo momento. Constitui, une e separa ao mesmo tempo as aparentes oposições binárias acima descritas. Ou seja, é um paradoxo. Essas e outras diferentes dimensões psíquicas (psicótico/não psicótico, protomental/mental, adulto/infantil, ódio/amor, paciente/analista etc.), simultaneamente separadas e unidas pela cesura (/), representam dois mundos, ou estados mentais, nos quais vivemos ou transitamos mesmo que um deles predomine como vértice de observação.  (Renato Trachtenberg SBPPA)