terça-feira, 23 de outubro de 2012

Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino prá lá ...


O título em francês vem da expressão “le mettre dans sa poche avec son mouchoir par dessus” (colocar no bolso com seu lenço por cima),  que significa botar um ponto final em alguma coisa, esquecê-la, não pensar mais nela. 


Les Petits Mouchoirs, com seus personagens carismáticos, nos envolve com os dramas encobertos pelos pequenos lenços, ou seja, os relacionamentos e o modo como estes vão tomando devidas proporções na medida em que cada um alimenta e/ou esconde as próprias expectativas sobre seus sentimentos e sobre a vida.



Les Petits Mouchoirs, com Guilles Lellouche.



Quem nunca imaginou que a própria trupe de amigos trintões, cada um com seus anseios, relações amorosas e conflituosas, daria um filme? Eu já.

É bem fácil a identificação com os personagens de Les Petits Mouchoirs, quando se colocam em situações bastante comuns: jantares com muitas garrafas de vinho, todos ao redor de uma mesa conversando, rindo. Algumas vezes, parecem falar apenas palavras vazias - outras vezes, conseguem dizer o que realmente pensam e sentem.
Aos poucos as neuroses vão sendo reveladas, e as pequenas máscaras que carregam, não conseguem mais esconder a insegurança de cada um. 





No filme, esses jovens franceses são visivelmente sedentos de amor e não conseguem enfrentar temas difíceis como: separação, morte, solidão, mas  sabem desfrutar dos momentos bons da vida. 


A partir da observação deste grupo de amigos, Guillaume Canet está falando de si mesmo. O diretor parece ter uma visão bem realista e nada romântica em relação aos anseios da sua geração. 



Ao contrário dos seus predecessores que viveram os conturbados anos 60, os quarentões dos anos 2010 não estão lá muito interessados em lutar por algum ideal (se é que ele existe) ou chorar pelos sonhos da adolescência não atingidos. 

Os tempos atuais são outros. Em vez do discurso político, da efervescência cultural e ideológica, a sociedade dos dias de hoje parece mais preocupada com a necessidade de fazer dinheiro e a busca pelo prazer a todo custo. A insignificância dos problemas dos personagens parece conter um recado de Canet: 

O mundo tornou-se menos contestador e mais pragmático.



Se o caldeirão de conflitos a certa altura da narrativa passa a incomodar, com certeza não é porque o filme já dura duas horas e meia, muito menos porque as loucuras dos amigos lá da tela são absolutamente banais, corriqueiras, ou só  interessam àquele grupo de pessoas.
Não. Se incomoda é porque pegou na veia. 



As similaridades com a história contada estampam uma radiografia da nossa geração. 

Não é uma simples ode à amizade. 

Mas sim um olhar atento, às vezes até cruel, sobre o nosso narcisismo, hedonismo, culpas e desejos. Não é fácil tolerar aquele grupo se divertindo, à luz do sol e à beira mar, em contraponto com o trágico evento que eles testemunharam dias antes de pegar as malas. A dor vem da identificação com aqueles que tamponam as próprias dores e sentimentos e fazem de tudo para ficar bem longe da realidade.



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

verbo (to dog): perseguir, seguir como um cão, juntar-se a.


Dois filmes bem complementares, co-incidentes, Dogville e Straw Dogs.


Existem filmes que podem ser considerados maravilhosos por fazerem você sair do cinema com a boca amarga? 
Sim. Lars Von Trier consegue fazer isso muito bem e por muitas vezes.


"Você acha que ajudando as pessoas você está sendo boa? Isso é arrogância."

Grace em inglês quer dizer graça. 
No início do filme Tom diz que a cidade precisa de um presente. Em inglês, presente é gift. Gift também pode ser traduzido como dom. 
Grace é o dom, a graça, recebida por Dogville. 
É um teste divino. Ela altera a vida besta do lugarejo. Primeiro, alegra a vida de todos, depois as complica e finalmente é sacrificada para que a comunidade se mantenha coesa. Diante do testemunho que presta frente ao conjunto dos moradores, descrevendo as mesquinharias, violências e intrigas de cada um, o efeito é unir todos contra ela. Se não o fizessem, seriam obrigados a se separar. 
A comunidade acabaria. 


O filme de Lars Von Trier nos escandaliza porque traduz uma sociedade hipócrita em que somos inseridos quase que naturalmente, e o filme fica bastante impalatável, quando encena o mundo que é construído com nossa covardia. 
Nós somos Dogville. 


A impotência, o cultivo de nossas frustrações e nossos medos, os desejos de vingança escondidos, a repressão dos sentimentos.
No lugar do sentir:  uma boa pitada de boas maneiras. 
No silêncio da nossa falsa bondade, esboçando aquele sorriso de enganadores, nos apropriamos, abusamos e violentamos a primeira Grace que aparece em nossas vidas. 

Trier escancara tudo isso em um filme com formato de teatro. Joga lentamente na tela amarelada a pergunta:

Como saber quem é mais arrogante?

Do ponto de vista de um cão, não importa se quem lhe é superior é humano ou divino. Se conseguirmos superar as relações de dominação ainda ficaremos nós, sem cão e sem Deus, com a já enorme complicação de sermos apenas humanos. 






Tanto na versão original, com Dustin Hoffman, no início dos anos 70, assim como na versão repaginada do ano passado, Sob o domínio do Medo é sempre atual. 
A violência é explícita, os sentimentos são contidos.
Essa crueza dos personagens que incomoda tanto, machuca os olhos de quem assiste aquilo tudo numa sala escura.

O filme começa do alto para baixo, ou seja, como se alguém estivesse observando os fatos de um  lugar privilegiado, dos céus. Justifica o título original: Cães de Palha - Straw Dogs baseado na filosofia do chinês Lao-Tzu :

Nos antigos rituais chineses, cachorros de palha eram usados como oferendas para os deuses. Durante o ritual, eram tratados com a mais profunda referência. Quando terminava, e não sendo mais necessários, eram pisoteados e jogados fora: “Céu e terra não tem atributos e não estabelecem diferenças: tratam as pessoas como cachorros de palha.”  Se os humanos perturbarem o equilíbrio da Terra, serão pisoteados e jogados fora.




Insuportável para muita gente, são os filmes que fazem pensar: 
sobre as fraquezas humanas, os limites da inveja, as provocações que desorganizam o que aparentemente está funcionando bem.